Pé na txom [é dia de voltar ao Tarrafal]


Pé na Txom
[dia de voltar ao Tarrafal]

Ilha, Santiago, rochedo isolado, pedaço de terra enxuta, cercado de gente por todo lado! Lugar de morfologia inquieta, desenhado pelas diversas ínsulas que tem dentro. Tem fogueira para cozinhar ao ar livre, tem wi-fi para falar com a família, tem casas de betão, tem albergues precários erguidos de fugida, tem eventos esporádicos de djunta mon, diluídos numa abundante e trágica indiferença, alimentada por estados agudos de tratar apenas do próprio umbigo, tem sobranceria exuberante, tem humildade excessiva, um real mix hiper contemporâneo, ancorado no mar do atlântico.

Rochedo sobrevivente,
exibe sem modéstia um indisciplinado relevo,
prova de luta, construção imponente,
memorial à persistência,
celebração silenciosa da saudade e do esquecimento
enigmática obra, fruto de rebelião forçada.
palco de contradições,
mote de paixões assolapadas e de graves decepções.
Paisagem desconcertante, em permanente mutação,
arrasa corações quando se veste de verde,
emana um estranho deslumbramento quando, sem vestes, se dá a ver em tons ocre e terra seca.
Teu chão comprido, escarpado, é movediço
é sementeira em stand by, é palco de múltiplas cruzadas,
arquivo de memórias importadas, laboratório de vidas modernas, mercado, casa de repouso,
lobby de hotel, coliseu, entreposto, é eterno lugar de passagem!

Vem gente de todo o lugar, pelo ar, pelo mar ou à boleia de um potente cabo de fibra, todos os pretextos são justificação, para ter de passar pela ilha. Território inquieto, guardado pelo impertinente ritmo das ondas, suas margens são um permanente work in progress obra em aberto de areia jovem e fina, que o mar se encarrega de levar para outros lugares!Vai e vem de gente atarefada, que passa pela ilha procurando forma de estrategicamente se posicionar no mundo, entre o mainstream e a bizarria da tradição, crescem as fábulas semeadas por uma imensidão de desvairados argumentos. Entorpecido por tamanho rodopio, não há chão capaz de, a tempo, se regenerar, para evitar ver-se tomado e de pronto vilipendiado! Reza a história que tal terá sido o que sucedeu algures no ChãoBom, pedaço de solo do Tarrafal!

Chão Bom, lugar entalhado pela  sorte e pela má fortuna,
pródigo em atrevidas manifestações da natureza,
foi em tempos morada da crueldade do tirano e de sua desalmada quadrilha,
solo ultrajado, muralhado, onde o sol fervente convertia em torresmos a ousadia e os pensamentos divergentes!

Tarrafal é palavra de múltiplos sentidos, é designação de geografia abençoada, é sinónimo de tortura, de exílio forçado e de liberdade aprisionada!
Tarrafal é a terra da baía, é Txom Bom, é pé na Txom!

Tarrafal, fica numa ponta, lá fim da ilha, entre o mar e a Serra Malagueta, bem longe da capital, é ponto de encontro, é retrato desfocado de um tempo (não) passado, é soma de instantes, é pintura a cores, é fotocópia a preto e branco, é tão só um lugar de gente, gente que vem de fora e gente que sempre esteve dentro!

Gente, muita gente miúda e graúda,
desenham, sem intenção, uma desconcertante coreografia!
É rudeza pura, é  linguagem de corpo que aprendeu a lidar com o constrangimento!
É dança com a sombra, é diálogo requintado com a luz do sol ardente!
Manifestação fervorosa de fé, canta-se com intensidade as proezas da vida,
Entoa-se com garra a palavra divina, roga-se por sorte na pesca e alegria para iluminar o dia!
A festa está na rua, é tempo de celebrar o Nhô Santo Amaro.
É dia de voltar ao Tarrafal!

Pelas ladeiras íngremes, pelas encostas ardilosas, o caminho – sinuoso de terra batida, faz-se sempre de-pressa, entre o pó e a areia fina, com um calçado resistente ou com um par de chinelos, não há razão, obstáculo, ou saudade capaz de deter a marcha, é imperioso que se cumpra a viagem para descobrir de que chão é feito o resto de mundo, que se estende para além da paisagem, é esse o desígnio maior da gente simples que habita as entranhas da Ilha.

Vou mar adentro,
levo comigo tudo o que preciso,
o vestido de festa, a água de cheiro, as cores de pintar o rosto, os brincos de ouro velho e um colar fino, não esqueço o panu di terra para me proteger dos embaraços e do frio.
Tenho pressa, vou descalça, quero sentir de que chão é feito o caminho!
[ilha, condição de viver mergulhado no oceano]

Antónia Marques

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