
a excepcionalidade e a emergência, do estado em que nos encontramos, parecem ser justificação bastante para o extenso rol de negligências e irresponsabilidades que, há décadas, contaminam a vida da generalidade das populações.
vale quase tudo neste estado de excepção mas, parece não haver a menor paciência para o contraditório.
é tempo de consensos solidários, clamam os cérebros confinados, incapazes de perceber que parte do isolamento, a que estão obrigados, é fruto de uma consecutiva e prolongada exposição a toda a má-sorte de viroses financeiras e doenças sócio-infecciosas.
se, de acordo com as evidências científicas, existem fortes razões para isolarmos o corpo, as evidências sociais demonstram exactamente o contrário – a urgência de libertar o pensamento, para evitar a eclosão de outras tragédias e piores maleitas!
a velocidade e a simultaneidade dos eventos que preenchem estes dias eternos, perturbam a concentração e, em alguns momentos, atrasam a capacidade de resposta, no entanto, a vertigem da realidade não justifica que se esconda a responsabilidade atrás de slogans importados e se deposite a esperança toda em pinturas fofinhas.
um conjunto vasto de anomalias ditou a estranheza deste lapso de tempo, considerado por muitos como a suprema oportunidade, para curar uma série de epidemias. perversão tamanha encontrar na calamidade espaço para divagar sobre a beleza do mundo, apenas porque anteriormente, dizem esses seres perversos, estavam focados na conversão de relações humanas em transações comerciais, com elevado valor de mercado!
a bizarria está, no tempo atual, ao rubro. um pouco por todo o lado surgem ideias mirabolantes e soluções excêntricas, que, na tentativa de solucionar o presente nos atiram para as profundezas do passado, onde somos forçados a conviver com trejeitos e memórias guardadas com estima mas sem um pingo de verdade.
exemplo supremo, dessas práticas lamentáveis, é o projeto hashtag estudo em casa, promovido pelo Ministério da Instrução. incapazes de enfrentar a entropia da contemporaneidade, o ministro e sua família governativa mais próxima, deram à luz uma telescola recauchutada!
o renascimento da escola televisionada é prova contundente da crónica incapacidade operativa, da qual padece o ministério da educação, entretanto convertido numa estrutura fantasma, dedicada à produção de papelada sem qualquer utilidade pública!
a criação desse projeto, celebrado até às náuseas por uma série de gente, expõe as debilidades de uma escola destroçada pela consecutiva acumulação de displicências, irresponsabilidades, alheamentos, ausências, carências e muito desamor.
a negligência dos gestores das causas públicas e dos bens comuns é, em contexto escolar, indisfarçável. os recintos escolares são verdadeiros labirintos sociais, lugares ermos e solitários, à volta dos quais têm crescido muros, fossos e distâncias sociais intransponíveis. toda esta medonha realidade pariu a escola por um fio – modalidade de instrução, desenhada pelas carências económicas, que asfixiam grande parte das famílias portuguesas!
é possível fazer muito mais com muito menos, se tudo for feito com todos – os alunos, os professores, os funcionários, todos aqueles que fazem a escola suceder em cada território prioritário, em cada lugar ermo à beira-mar plantado!
é possível fazer muito mais com muito menos, se tudo for feito com respeito pelo trabalho pedagógico inovador e criativo desenvolvido por alguns professores!
é possível fazer muito mais com muito menos, se tudo for feito com a voz e a jovialidade da generalidade dos alunos – seres-humanos dotados de sensibilidade e capacidade para lidar com o desconhecido!
teria sido possível fazer muito mais com muito menos se, ao invés de investirem na degradação estratégica e na disfuncional flexibilidade curricular (onde pára neste momento esse famigerado projeto?), o ministério da instrução e seus agentes infecciosos se tivessem dedicado à cultura da batata!
este trágico regresso ao passado seria o bastante, caso os cérebros não estivessem confinados, para exigir demissões e pedidos formais de desculpa à população.
o retrocesso descomunal que este processo maquiavélico despertou não tem justificação, era de facto possível fazer muito mais com muito menos, se tudo fosse feito a tempo! e o tempo de que se fala não é o atual, desenhado pelo rigor da pandemia e pela urgência da calamidade, é todo o tempo anterior, onde faltou a vontade para se fazer a distribuição da riqueza, de forma equitativa pela população, independentemente do berço, da alcunha, da cor da pele, ou da forma dos olhos. esse tempo passou e a escola por um fio foi tudo o que ficou!
(nota: a autora do texto recusa comentar o desempenho dos profissionais, requisitados pelo Ministério da Instrução, para assegurarem a escola por um fio, por considerar que é um assunto destituído de relevância para a matéria em apreço)
Antónia Marques
Abril, 2020