Este caderno não tem unidade.
d’après Luis Romano
Seu equilíbrio está na desunião natural dos seus quadros.
Caderno de observações tem dupla existência,
ora sobre tela digital, ora sobre papel de almaço,
sucede o registo exploratório e a interpelação das circunstâncias, que (de)formam o espaço coletivo.
Nas páginas, deste longo caderno, inscrevem-se diálogos vários e conversas discretas, inspiradas na lavra de outras geo.grafias e tempo… tempo para trazer à memória a sensibilidade que nos une e inferir a barbárie que nos separa.
Na obra “Cabo Verde: Um corpo que se recusa a morrer – 70 anos contra fome, 1949-2019”, José Vicente Lopes expõe uma série de eventos e referências, essenciais para quem procura trazer à memória a sensibilidade que nos une e entender a Barbárie que nos separa.
Nas referências – a obra Famintos, de Luis Romano.
No acervo das letras públicas – o Livro, sob o singelo registo 6230.
“Escrito na década de 1940, transportado clandestinamente para a África, publicado no Brasil em 1962 e interdito pela Censura.”
(Luis Romano)
dialogando
entre a lavra de Luis Romano e a safra do presente
A Humanidade que resta,
enclausurada em sombrios dias sem saída
que se repetem, iguais, um-atrás-de-outro,
está incapaz de recordar e de sonhar com dias diferentes!
Enredada num enfadonho presente eterno,
(con)vencida pela prosa dramática dos vendilhões deste Tempo,
a Humanidade, que sobeja,
baixa a cabeça,
rende braços e inteligência
e abraça
ilusões mercantis e fábulações apocalípticas
confessando
não ter Tempo para interpelar as circunstâncias
dia-atrás-de-outro
a Humanidade perde consciência
e colabora,
na extinção da memória,
semeando sobre cada pedaço de chão coletivo
um execrável individualismo
que perturba a natureza humana.
Porém,
dias-há em que
a natureza, dessa Humanidade retalhada,
é matéria-prima de criação
onde se inscrevem registos inapagáveis da história coletiva!
dias-houve em que Luis Romano, enfrentou a censura, denunciou a Fome do povo, pegou na matéria-prima e escreveu assim:
“Foi quando terminou que voltou-se para Mulato: chama-se a isto, meu Caro Amigo, BARBARIDADE em letras maiúsculas. A minha profissão, além de ser um benefício para a colectividade, é muito delicada e emocional, já porque implica uma análise profunda, sob o aspecto científico, às enfermidades perniciosas que pululam pelo mundo, como também se torna sensível, sob o ponto de vista humano. Quero dizer que obriga o Homem a ter consciência do sofrimento do Homem. A voz de cada um deve erguer-se mais alta que as suas ambições egoístas, em prol de um bem-estar que remunere o padecimento dos que lhes são dependentes.
Como médico, vítima de um regime autoritário, e dependente de uma ameaça constante, as condições e a situação presentes podem influir para que me cale. Como Homem, porém, que traz em si um pouco de sentimento livre, que bem raros compreendem, é isso completamente impossível.(…)
Encaixotar assim tantos infelizes é um crime monstruoso que não chega aos ouvidos distantes, porque o seu Casarão é fechado ao Mundo.
Fique sabendo, no entanto, este drama permanecerá por longos anos vivo no recôndito desses desgraçados que conseguiram escapar à calamidade da fome. De uma fome que nos dá a impressão de ter sido organizada para o desaparecimento de um povo. Provocada pelas estiagens e aproveitada pelos comerciantes e usurários e oportunistas.(…)
Infelizmente o mundo está de tal modo que milhões de entes se esvaiem no silêncio da imposição e da imprevidência, enquanto meia dúzia de agiotas faz erguer pedestais com bases numa falsa glória de monumentos, criada pela tacanhez das visões ocas e pedantes.”
Luis Romano
Famintos, 1962
dialogando
entre a denúncia de Luis Romano e a inclemência da agiotagem
em tempo de enfermidades
“Por toda a parte, gente a demolir casas, retirando as telhas e os tabiques. As janelas eram desencaixadas com cuidado porque valiam um pouco mais, e no seu lugar os homens faziam tapadas. As cadeiras, as camas, as roupas, desapareciam dos lares, e o desfile que se via nos caminhos ao povoado era repleto de vagabundos a acompanhar a leva, sem saber porquê.”
Luis Romano
Famintos, 1962
Art work
Antónia Marques
janeiro 2022