
Paulo Freire e a Pedagogia da Autonomia : Múltiplos olhares em Cabo Verde


Intro
Ao escutar o Professor Gadotti fui percebendo, de forma mais clara, o que tem dado alento à teimosia que me faz rumar a Sul.
O Sul das dificuldades expostas, dos privilégios circunscritos, das resistências informais, das assimetrias sociais indisfarçáveis, das agruras, das venturas, dos olhares ansiosos, dos silêncios profundos, dos gritos que não se ouvem, da fome de tudo, do nada em abundância, da colonização constante, da mediocridade disfarçada, da honestidade sem valor de mercado, das casas do povo abandonadas, das esperas perpétuas, dos desejos adiados, da empatia e da falta dela, da disponibilidade para a escola, da indisponibilidade da escola, do movimento urbano, das coreografias rurais, da vontade de querer saber mais…
Estranhamente, é neste Sul, de um planeta doente, que vou encontrando fôlego e espanto para enfrentar e resistir à falta de Norte dos territórios europeus.
No evasionismo, sobre chão insular, vou achando lapsos de silêncio onde,
ainda,
é possível
no meio de um desconcertante bulício – escutar a Terra –
da qual somos parte
sob o ritmo das línguas preteridas – dialogar com o pulsar do Tempo –
que trazemos dentro
lapsos de silêncio onde,
ainda,
é possível
(a)notar a sensibilidade Humana – que perdura nos lugares extremos
Ser – Humana – mente
Artista
Educadora
Ser – Humana – mente
cidadã praticante
é condição de vida da qual não abdico
Entre a falta de Norte e os excessos do Sul vou encontrando forma de Ser – Humana – mente Artista, Educadora e cidadã praticante.
E, por ousar praticar o dissenso, enfrento inúmeras dificuldades, debato-me com bloqueios, viro do avesso todo o género de anomalias, que visam subtrair entusiasmo ao exercício da arte e da cidadania ativa.
O neoliberalismo, que coloniza as nossas vidas e que, todos os dias, entra pela escola dentro, tem tentado impedir, por todas as vias, que se coloque em prática o mui nobre e essencial legado de Paulo Freire.
Nesses neo-espaços submissos é cada vez mais difícil professar uma pedagogia livre, crítica, criativa, inspiradora, capaz de despertar a sensibilidade e enriquecer o mundo emocional que nos liga e faz humanos!

A obra – Pedagogia da Autonomia
No decurso da leitura da obra de Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia – que serve de mote ao nosso Encontro, fui estabelecendo uma série de ligações às memórias que tenho em mim.
Inevitavelmente, as conexões insurgiram-se uma após outra, entre si, foram criando um alinhamento peculiar…
A apreciação dessa sucessão de lembranças, gerada no ventre da leitura orientada, despertou a necessidade de dedicar o Tempo desta apresentação ao capítulo – Ensinar exige estética e ética.
As imagens que vos trago pretendem ilustrar a vida e os encontros que sucedem de caminho, entre a criação sensível e a pedagogia que nos transforma.
A estética, que resulta desses encontros, responde ao desígnio de ilustrar a ética que anima o processo criativo e a exigência que conduz o percurso formativo!
A partilha / apresentação – Ensinar exige estética e ética

[ a criação artística na oficina / atelier da Escola Técnica de Mindelo ]
[ diapositivo 1 ]
Com humildade, apresento breves lapsos de Tempo e Vida que se estendem entre a pedagogia e a criação artística, ora em uníssono, ora na mais completa desarmonia.
Por acaso, ou talvez não, a minha prática artística / pedagógica está, de uma forma ou de outra, re-ligada à utopia pedagógica de Paulo Freire.
É minha intenção ilustrar essa re-ligação com as imagens que vos trago, repletas de vivências, de histórias, de encontros, (des)encontros de resistência, onde se exerce a ética e se tenta resgatar a estética, para salvar o que resta de Educação pela Arte.

[ tempo de minguarda, no recreio à beira do mar, escola de Salamansa ]
[ diapositivo 2 ]
Sabemos como se encontra deliberadamente enfraquecida a formação cultural e artística, nos mais diversos contextos educativos.
Conhecemos o esforço redobrado, a resistência e estoicidade necessários para defender a seriedade, a pertinência e a valorização da educação artística nos currículos formativos.
Se, ante as dificuldades, ainda assim alguns andarilhos utópicos decidem prosseguir, certamente será porque algures, nesse atrevido caminho, terão percepcionado que a educação é, em si mesma, uma obra de arte, que se concretiza quando o andarilho educador ousa Ser – Humana – mente um artista.

[ do desenho, como linguagem universal para comunicar humanamente ]
[ diapositivo 3 ]
Para caminharmos nesse sentido, para darmos corpo a uma obra de arte / pedagógica coletiva, temos de, como nos diz Paulo Freire, saber partir do nível em que os educandos estão para nos conseguirmos situar cultural, ideológica e politicamente.
Perceber a situação específica, em que se encontram os alunos é, de facto, essencial para com eles estabelecer uma relação de empatia que faça florescer o respeito mútuo.
A empatia criará condições para que cada um se faça ouvir e ocupe o seu espaço de intervenção, para que, juntando vozes, possamos produzir conhecimento amplo e transversal, com real significado e potencial transformador.
Esta fase crucial, onde o Tempo é consagrado à compreensão e à empatia, é a génese da obra de arte e de vida do Artista-Educador. Na sala de aula, convertida, sempre que necessário em atelier de criação, concretiza-se a fusão, que dá origem à obra colectiva e à oportunidade de transformar a Vida através do conhecimento!

[ tecendo a liberdade, sobre chão insularl ]
[ diapositivo 4 ]
Temos essa obra em mãos,
as mãos e suas imensuráveis possibilidades
as mãos que articulam pensamento e visualidade
a mão que propõe, que idealiza, que pensa e que age
a mão, o corpo, a obra da tremenda (a) mente humana.
Destaco esses movimentos pelos quais o corpo humano vira corpo consciente.
A questão do corpo, que está presente nas diversas abordagens pedagógicas de Paulo Freire.
Compreendo a essencialidade dessa perspectiva, adopto conscientemente esse posicionamento.
Dado que, é condição inalienável, estar presente de corpo e alma, quando se mergulha no mar da vida e se dá à costa algures numa sala-de-aula.
A linguagem corporal, as expressões faciais, a sensibilidade, a forma como nos apresentamos e nos entregamos ao outro, nas palavras de Paulo Freire a boniteza do ato educativo, constitui forma privilegiada de envolver o educando no processo de aprendizagem.
Pensar na pertinência das coreografias, desenhar os movimentos, acertar os ritmos, repensar a cadência das intervenções, ajustar o som, a dicção, cuidar da apresentação, não esquecer o sorriso aberto, franco e generoso, para cumprimentar, para saudar, para elogiar. Adequar a luz, diminuir o drama, renovar o ar, abrir a janela, desmaterializar o palco para que todos se sintam protagonistas de uma cena colectiva!
É urgente cuidar da performance e da esteticidade da educação,
É crucial libertar a aura de constrangimentos,
É essencial consagrar o corpo para conquistar a atenção das almas!

[ a arte foi à escola mas ficou-se pelo recreio ]
[ diapositivo 5 ]
A arte, na vida como na escola, tem um poder fundamental!
Talvez, por isso mesmo, se veja arredada dos mais diversos contextos escolares.
É na sua força transformadora que reside a sua maior desgraça
Educar a sensibilidade humana
Promover a auto-determinação
Estimular a literacia visual
Ensinar a descodificar os ícones contemporâneos
Combater a cegueira crónica instituída
São pretensões demasiado ousadas,
que não servem a mediocridade, nem as agendas governativas, subordinadas aos mercados e às indústrias criativas!
A força avassaladora, a liberdade que propõe, a autonomia e auto-estima que fomenta
são argumentos demasiado sérios e grandiloquentes
que condenam a criação artística à exclusão e a afastam da Educação

[ conversas com gente dentro, da falta de Norte e do Sul indiferente ]
[ diapositivo 6 ]
Contrariar essa exclusão é possível, porém, não é tarefa fácil
mas… a determinação, a tal que move montanhas
de quando em vez, faz acontecer a criação com comoção e espanto
quando tal sucede
não há como evitar sentir um imenso privilégio
por ter a oportunidade de combinar essas preciosas faculdades,
É uma luta intensa,
que compensa
sempre que, a combinação de linguagens faz surgir
um lapso de Tempo precioso – em que se acende, nos olhos de outros, a luz da sapiência!
E o momento, maioria das vezes, impõe-se sem pedir licença,
pois, a educação, nos termos de Paulo Freire, pode ocorrer de múltiplas formas e em diversos contextos.
Veja-se, por exemplo, o impacto da alfabetização de 300 pessoas em 45 dias, que Paulo Freire promoveu, segundo uma metodologia inovadora e alternativa.
Partindo da realidade, do respeito, da confiança e do estímulo para a aprendizagem com sentido, o educador ousou, arriscou, dialogou com as pessoas, identificou as suas necessidades e, com elas, desenhou a resposta. Os resultados surgiram, a população em 45 dias aprendeu a descodificar o significado das letras e dos números. Conquistou letra-por-letra a autonomia de poder ler e escrever a sua própria vida!
A pequena experiência, pelo sucesso que desencadeou, viu-se convertida em plano nacional para responder às necessidades da alfabetização da população. A Educação mergulhou na realidade e aí gerou a Obra de Arte que transformou a Vida a uma série de pessoas.

[ a educação artística por um fio, educadores reunidos em Assomada ]
[ diapositivo 7 ]
É tempo de libertar a escola, abrir portas e janelas, derrubar modelos caducos, virar do avesso a didática, rasgar manuais desactualizados, e ter coragem… coragem para recusar, para afirmar, para orientar, para exigir, para respeitar o Tempo que se passa dentro de um estabelecimento de ensino.
A escola colonizada não serve a humanidade.
A escola elitizada não serve a liberdade
A escola carente de ética e estética não serve a sensibilidade do Ser-Humano
Os recintos escolares perderam o Norte,
a pedagogia foi substituída pelo treino intensivo
pela competição sem sentido,
lamentavelmente, a escola doente só sabe investir no individualismo
Plano maquiavélico este, urdido sem escrúpulos,
levar a generalidade da população à escola,
para logo em seguida,
transformar o sonho numa realidade péssima…
primeiro espalhou-se a boa nova – a escolarização em massa surgia,
pais e mães fizeram sacrifícios para custear a alfabetização dos filhos,
crianças, jovens e adultos rumaram à escola
para aprender a soletrar outros futuros
porém,
aí chegados,
num ápice
deram por si sentados,
no meio de uma multidão entediada,
pela excessiva exposição à pedagogia desajustada!
Aparentemente, não existe solução para esse ciclo viciado
pois, se o educador foi criado numa escola, assim, doente
como poderia ele ser diferente?
pois, se a escola consagra a sua atividade ao adestramento
como poderiam os alunos escapar ao treinamento?
será possível quebrar este ciclo, repleto de maus-hábitos e péssimos vícios?

[ com a planta dos pés sobre o peito, ousamos caminhar sensivelmente ]
[ diapositivo 8 ]
Estou certa que sim,
com rigor, ética e um mundo amplo de estética
de mãos dadas à decência e à boniteza da existência
é possível romper o ciclo
derrubando os muros que separam a pedagogia da vida
respeitando os sonhos e resgatando a vontade de mudar de rumo!
com tenacidade e ignorando parte do que aprendeu na escola,
o educador que observa, que tem vontade de aprender de novo
está apto a fazer estragos
o seu pensamento certo será contagiante,
os seus educandos jamais terão dúvidas
serão parceiros de descobertas
serão aliados das bonitezas de outros mundos!
Respeitar a confiança, depositada na escola, deveria constituir o primeiro compromisso de qualquer educador!

[ mãos ao alto, sobre outros ritmos e mundos ]
[ diapositivo 9 ]
Honrar esse compromisso, implicaria uma outra forma de estar no mundo, um caminho de resistência àquilo que são as ofensas, as restrições e os condicionamentos, que todos os dias se abatem sobre os espaços de educação.
Pelo que, inevitavelmente, como educadores comprometidos não podemos cair na armadilha de considerar que a nossa atividade deve ser neutra e inócua. Não, bem pelo contrário, a nossa ação deve inscrever-se na realidade, no Tempo e na Vida dos educandos.
Não há que ter receio de estabelecer diálogos que promovam diálogos sobre as ideologias políticas, em que estão mergulhadas as nossas vidas. Não há porque evitar que a aprendizagem decorra em paralelo com a realidade, que dela se alimente e a questione!
Não há porque negar a necessidade de agarrarmos com as mãos a própria vida! Esgravatar entre mil e uma cores, para descobrir as tonalidades de que são feitas as soluções para os problemas!

[ ilustrar de corpo e alma ]

[ a música que alenta o traço, do gesto individual e da obra coletiva ]
[ diapositivos 10 / 11 ]
Inevitável será que após sujar as mãos
nas cores da existência,
o Corpo dê por si a pensar
porque não ousar
viver com eloquência o ímpeto de criar?
a resposta surgirá com firmeza, muita angústia e uma tremenda boniteza!
A dúvida eterna terá energia suficiente para não deixar esmorecer o ímpeto que nos faz gente
autónoma
livre
e independente!
Seja em território que perdeu o Norte
seja em território que renuncia o Sul
É preciso derrubar, de Corpo e Alma, as paredes de vidro que cercam esses territórios

[ eu escuto, tu desenhas, nós dançamos e geramos a obra que celebra a humanidade ]

[ desenhar a utopia, no colectivo ]
[ diapositivos 12 / 13 ]
Derrubar obstáculos, ainda que nem sempre sejam percepcionados como tal
implica ser capaz de reinventar a própria existência,
e de contagiar outros com a vontade de participar na experiência.
Porém, a dominante pedagogia da repetição, que prima pela obediência a modelos de instrução adulterados
é a negação dessa reinvenção, é o caminho errado para onde são empurrados os “espaços vazios”
que são preenchidos com conteúdos inúteis, inadequados, fúteis, insuficientes para transformar a Vida em existência!
Infelizmente, os espaços escolares estão em colapso
cheios de moribundos de todas as idades
educadores, educandos, mestres e contra-mestres
esvaem-se em enredos medíocres, prestam provas sem sentido
abrem lições, fazem sumários, sem se olharem nos olhos
repetem, sem questionar, ações sem sentido, desajeitadas, desajustadas
inscritas em manuais policiados, paridos pelas editoras mercantilistas.
a desleixada utilização dessas práticas e escritarias submissas
tem feito sucumbir, por falta de relevância intelectual, a educação!
aprender a descodificar letras e números servirá para quase nada,
caso não se aprenda, simultaneamente, a desenhar
sonhos e utopias
e a reivindicar o direito a transformar a Vida em Existência!
é urgente reorganizar as letras, os números, os grafismos, os fonemas, os pontos finais e as vírgulas indecisas!
não há tempo para nos enlearmos em enredos medíocres, em escritas burlescas, em estórias sem interesse, é preciso continuar a andarilhar para evitar o colapso da utopia que nos faz gente!
é urgente escutar humana – mente
é imperioso voltar aos lugares onde mora gente!

Celebrando a Vida e a Obra de Paulo Freire,
Andarilho de Utopias com África
Antónia Marques
abril 2021