As patologias do património cabo-verdiano

do património da humanidade

Há um imenso mar que separa as casas de cultura edificadas sobre o insular chão cabo-verdiano, por obra do acaso, ou talvez não, parte desse património público encontra-se ligado por uma estranha argamassa, resultante da combinação de terra das ilhas com poeiras lusófonas.

A utilização dessa espécie de opus caementicium, ter-se-á generalizado em 2017 – o ano da liberalização das paixões de há séculos! Resultado, as paredes do Forte de São José (Cidade Porto Inglês), as fundações da Igreja Nossa Senhora do Rosário (Cidade Velha), os tectos do Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design (CNAD, mindelo) ficaram unidos pela assinatura de uns experts em contratos de fusão, onde a iniciativa privada se mistura com a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD).

Lamentavelmente, o Património Cultural Cabo-verdiano e suas patologias converteram-se em (mais uma) arena de negócios lusófonos. Para tal, muito terá contribuído a implementação, em 2017, do Fundo Europeu para o Desenvolvimento Sustentável (PIE) – o braço central do Plano de Investimento Externo Europeu. Esse novo plano visava, sobretudo, potenciar o envolvimento do sector privado no desenvolvimento socioeconómico em África. 

Os actores da Cooperação Portuguesa, cientes das oportunidades introduzidas pelo PIE, desdobraram-se em contactos, recuperaram amizades antigas e re-estabeleceram parcerias. Numa azáfama, à bolina dos euros de Bruxelas rumaram, de novo, a África procurando sustentabilidade para os seus negócios.

De facto, em 2017, sobre o insular chão cabo-verdiano, sucederam-se uma série de eventos e encontros informais, no ventre dos quais se urdiram ajustes directos, pactos de amizade e castelos de areia. Entre sorrisos, abraços e muito mel-de-cana, terão sido traçadas as concessões que, por tempo indeterminado e ao abrigo da famigerada cooperação, haveriam de explorar o património cultural das ilhas, desde 2017, presidido por Hamilton Jair Fernandes.

O normal corrupio de mestres em obras de cooperação e romeiros afectos a instituições públicas portuguesas, viu-se subitamente acelerado. Os governantes cabo-verdianos, atarantados com tanta e tão abnegada filantropia, não se deixaram entorpecer. Uns, assumindo funções de cicerone, levaram a caravana filantrópica a conhecer os encantos das ilhas, outros, no papel de mordomo, distribuíram os grupos por celebrações de carácter privado. Porém, os mais astutos mantiveram-se à porta dos grandes investimentos públicos e, trajando a indumentária de concierge, atenderam aos pedidos privados dos agentes lusófonos, ajudando a viabilizar avultados contratos de fusão.

Nesse contexto, são de destacar as viagens da Eng. Ana Velosa, em representação da Universidade de Aveiro (UA) e do Arq. Gabriel Andrade e Silva, em representação da Direcção Regional de Cultura do Norte (DRCN), que tiveram lugar em novembro de 2018. Acolhidos e orientados por Jair Hamilton Fernandes, visitaram diversos lugares de relevância patrimonial, tendo em vista a definição de estratégias de cooperação na área da reabilitação e restauro do património cabo-verdiano.

Dessa forma se terá formalizado a produção do tal opus caementicium que, ainda hoje, liga os tectos e as paredes das casas de cultura crioulas às fundações de certos negócios lusófonos!

Entre rebocos, chapiscos e intervenções estéticas, a engenheira e o arquitecto terão achado nas patologias do património das ilhas, inspiração para lançarem, por iniciativa própria, em 2019, as fundações da sua nova empresa – OpusCalsis – arquitectura, engenharia, consultoria em reabilitação, Lda.

[ Ora, confesso que este desvio de argamassa me baralhou! ]

Tudo indica que, desde a data da sua criação, a actividade da OpusCalsis em Cabo-Verde tem sido intensa e frequente. No entanto, só em junho de 2022 é que foi referenciada publicamente da seguinte forma:

“A requalificação do CNAD tem contado com a participação de diversos profissionais, especialistas nas mais diversas áreas. No último mês, recebemos a equipa de restauro, altamente qualificada, (da empresa) OpusCalsis.

Concluído o trabalho, que surpreendeu, também, as pessoas envolvidas, reforçamos o convite para assistir ao “Paleio”(conversa aberta) que irá decorrer hoje no Centro Cultural do Mindelo, pelas 18h30, com os especialistas.”

(publicado na página de facebook do CNAD, 8 junho 2022)

Com efeito, a conversa foi aberta e, embora não tenha sido muito esclarecedora, permitiu dar a ver que a dita equipa havia efectivamente restaurado, com folha de ouro, os tectos do CNAD. No entanto, ficaram por revelar as circunstâncias em que a OpusCalsis se terá aproximado dos ditos tectos. Concurso público? Ajuste directo? Informal acordo de cooperação? Infelizmente, nada, para além da superfície dos tectos, foi revelado.

De facto, o recurso aos serviços da OpusCalsis foi apresentado como uma confrangedora inevitabilidade, justificada pela total ausência de profissionais cabo-verdianos, habilitados para executar com sapiência a exigente tarefa de restauro, assim proferiu Irlando Ferreira, Director de CNAD. Lamentavelmente, o Director abordou esta temática de forma bastante vaga e, para agravar a superficialidade do quadro, terá deixado por esclarecer a dimensão geográfica da alegada ausência de qualificações. Pelo que, subsiste a dúvida – será que a falta de competências também se verifica entre os inúmeros cabo-verdianos da extensa Diáspora?

Mas, se à generalidade dos cabo-verdianos parecem faltar qualificações para obras de restauro, à equipa do CNAD parece não terem faltado dotes de adivinhação de contactos empresariais ocultos. Efectivamente, só no plano da ironia se compreende que seja mais fácil comunicar com a empresa portuguesa OpusCalsis em Cabo-Verde, do que em Portugal, país onde está sediada a sua morada fiscal.

Entre a ironia e os dotes de adivinhação fica suspensa a questão, terá a OpusCalsis adoptado como estratégia de comunicação o célebre boka-boka?

Ainda na sequência do teor e dos termos que a dita conversa abriu, revelou-se crucial refletir sobre a formação dos recursos-humanos cabo-verdianos. Procurando compreender porque é que, após tantos anos de Cooperação, ainda continuem a registar-se ausências de competências, recorrentemente resolvidas com a importação de mão-de-obra lusófona.

Recapitulando:

  • A Universidade de Aveiro encetou, em 2014, programas diversos de cooperação com a Universidade de Cabo Verde desde 2014 .
  • O departamento de Engenharia Civil da UA tem prestado apoios diversos, nomeadamente na celebração de protocolos que facilitam a ida de estudantes para PT e na formação e qualificação do corpo docente, das instituições de ensino superior de CV.
  • A Eng. Ana Velosa e o Arq. Gabriel Andrade, umas vezes envergando a indumentária institucional, outras trajando uniforme da empresa a que presidem, têm vindo a dar formação em diversas instituições cabo-verdianas, nomeadamente no âmbito do Projeto Dinamização e Requalificação Turística na Ilha do Maio 2016/2019, promovido pelo Instituto Marquês Valle Flor (IMVF), que só entre 2018 e 2019 terá arrecadado a verba de 12 624 454,00 EUR ( entre apoios do IP Camões, da União Europeia, da Gulbenkian e da Câmara do Maio) para apoiar o desenvolvimento da ilha. “Cal em Cabo Verde, Produção e Utilização, aplicação na ilha do maio” assim se intitulava a formação, que esteve a cargo de Ana Velosa, Gabriel Silva e Vera Marques. 

Efectivamente tem sido imensa, cara e sofisticada a cooperação académica que, em jeito de Ajuda Pública ao Desenvolvimento, tem sido despejada em cima da ligação entre Portugal e Cabo Verde. No entanto, desafortunadamente, nem a abundância, nem a sofisticação, parecem ter sido capazes de fazer germinar, em chão insular, os recursos humanos essenciais para consolidar o processo de independência das ilhas. De facto, o que parece brotar sem constrangimentos, são as dependências de Cabo Verde em relação à “ajuda” dos terceiros do costume.

Este tipo de cooperação pouco transparente, ao substituir o estado e outros agentes locais por entidades do país financiador, promove a perpetuação da dependência da “ajuda” internacional, gerando novas formas de tolher o desenvolvimento e a autonomização de Cabo-Verde. 

Lamentavelmente a ausência de critérios claros e de rigorosos mecanismos de controlo, da relação entre os financiamentos públicos e as iniciativas privadas, tem fomentado o crescimento de uma série de ligações e negócios oportunistas, amplamente criticados em diversos relatórios internacionais. 

Ora, decerto a Eng. Ana Velosa, o Arq. Gabriel Silva, a UA , a DRCN, a OpusCalsis, o Instituto do Património Cultural (IPC) estariam cientes dos riscos de suspeição que incorriam, ao decidirem colaborar ao abrigo de uma cooperação carecida de transparência e regulação. Pelo que, certamente, não terão qualquer embaraço na clarificação das seguintes questões:

  • A prospecção das necessidades de restauro, efectuada ao abrigo da Cooperação financiada com dinheiros públicos terá, de alguma forma, fomentado a criação da empresa privada OpusCalsis?
  • Não existirá um sério conflito de interesses entre a actividade pública da Sra. Engenheira Ana Velosa, ao serviço da UA e do Sr. Arquitecto Gabriel Andrade e Silva ao serviço da DRCN e a sua actividade privada, ao serviço da OpusCalsis, nas múltiplas intervenções que têm vindo a realizar em Cabo Verde?
  • No decurso do levantamento das patologias do património cultural, que a especializada equipa lusófona levou a cabo, terá sido detectada a ausência de recursos humanos cabo-verdianos que, posteriormente, haveriam de justificar a contratação da empresa OpusCalsis?
  • Quem terá estabelecido o acordo de cooperação com o IPC, a empresa privada OpusCalsis? Ou as instituições públicas portuguesas, às quais a Engenheira e o Arquitecto estão ligados?
  • Até onde se estenderá, no tempo e no espaço, a relação da OpusCalsis com as indústrias criativas cabo-verdianas?
  • Quanto terão custado, ao governo de Cabo Verde, os serviços prestados pela OpusCalsis? Ou, terão os custos sido suportados pela UA e a DRCN?
  • Existirá alguma articulação entre o IPC e as Universidades de Cabo Verde, no sentido de adequar a formação académica às reais necessidades de Cabo Verde, de forma a evitar a eterna dependência de especialistas estrangeiros?

Em nome da honradez das mulheres e dos homens que, dia-após-dia reabilitam o património humano das ilhas, seria decente que os contratos celebrados entre o governo cabo-verdiano e as empresas portuguesas fossem formalmente divulgados! Seria de interesse público divulgar o teor e os termos do contrato celebrado entre o IPC e a OpusCalsis. 

Por respeito à população cabo-verdiana, de novo empurrada para uma espécie de Frentes de Alta Intensidade da Mão-de-Obra, como forma de mitigar a fome e a pobreza, é crucial esclarecer o teor, os termos e os resultados da cooperação. Instando as entidades cabo-verdianas e portuguesas a averiguarem, com rigor, para onde são canalizados os recursos financeiros que deveriam servir para acudir à pobreza, diminuir as assimetrias sociais e melhorar as condições de vida do povo.

É urgente reparar as expectativas dos cidadãos cabo-verdianos, evitando que seu suor e lágrimas se dissipem em solos permeáveis de bancas furadas. Pelo que, é tempo de desligar a Ajuda Pública ao Desenvolvimento da desregulada aquisição de bens ou serviços a empresas portuguesas! É urgente clarificar a quem serve esta cooperação pouco transparente.

Estou certa, de que estes esclarecimentos serão um contributo essencial para desembaraçar a relação entre os dois países. Creio que só assim poderemos almejar dar início a um tempo novo – humanizado, longe dos maus vícios e dos péssimos hábitos! Em condições para edificar, de raiz, uma relação de respeito mútuo, onde não caibam (pre)conceitos e práticas abusivas, sob a máscara da Ajuda Pública ao Desenvolvimento.

Antónia Marques

Este artigo foi originalmente publicado no jornal “Santiago Magazine” https://santiagomagazine.cv/ponto-de-vista/patologias-do-patrimonio-cultural-cabo-verdiano

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