CNAD, pó de ser o epicentro da contra-revolução

Adaptar o Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design (CNAD) à estratégia das indústrias criativas, terá sido a missão, no decurso dos últimos sete anos, do director que há dias cessou funções. E… talvez, tenha sido esse o seu maior equívoco!

Reza a história que, em 2015, o jovem gestor, à data um entusiasta das economias criativas, terá assumido as funções directivas do, então, Centro Nacional de Artesanato (CNA). Logo em seguida, em 2016, recém-chegado à pasta das Indústrias Criativas, o Ministro tomou o (epi)centro cultural de Mindelo e, num (p)acto solene, empossou Irlando Ferreira como representante do Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas na região Norte, para manter sob controle as ventanias culturais do barlavento. 

De lá, até hoje, a cultura cabo-verdiana tem percorrido um caminho longe, que já não devia ter sangue, mas tem… em que as bocas já não deviam reservar fechadas a dor para mais além, mas… fechadas estão. Malogradamente, esse caminho tem sido trilhado no sentido de desviar as instituições da resistência cultural, fincada no húmus da realidade material do meio onde se desenvolve, outrora preconizada por Amílcar Cabral.

Simbolicamente, o acidentado percurso do CNA coloca em evidência as consequências sociais e culturais operadas pelo trágico desvio à direita que o país tem vindo a empreender, e, talvez por isso mesmo, valha a pena refletir sobre a instituição, que hoje se apresenta ao mundo sob uma fachada (des)colorida. 

Reza a sabedoria popular que o espírito do tempo inaugural, do pós-independência, terá dado a alento à criação de uma quimera cultural colectiva, da qual haveria de resultar, em 1976, a criação da primeira instituição cultural de Cabo Verde – Cooperativa Resistência. Um ano depois, o pão & fonema, lançados com ousadia e determinação à terra-recém libertada, fariam brotar o CNA.

Gerado pela tenacidade experimental de um grupo de professores e artistas, o original CNA conferiu ao Artesanato, criado pelo povo das ilhas, uma voz diferente, livre, autónoma e eloquente. E, assim terá contribuído de forma incisiva para a consolidação e afirmação da identidade cultural da juveníssima nação cabo-verdiana. Ao sabor de um tempo novo, particularmente exigente e desafiante, esse ousado e criativo processo de valorização social, das obras realizadas com mestria pelas mãos do povo, urdiu uma significativa revolução, que terá despertado fundamentais actos de cultura.

Contudo, o espírito desse tempo revolucionário foi-se dissipando e, à medida que as ousadias culturais perdiam o fôlego, diminuía a capacidade de resistência do CNA. A instituição terá resistido, enquanto pôde, à mediocridade e à prepotência dos “poderes”. Mas… acabaria por sucumbir, ao ver a sua essência enredada nas tramas neoliberais, das famigeradas indústrias criativas.

De facto, o fatal e lamentável declínio do CNA terá sido apenas a face de um perecimento mais alargado, que se repercutiu no enfraquecimento da Voz do povo cabo-verdiano, menorizando a sua sapiência cultural e desvalorizando socialmente a mestria das suas criações. Infelizmente, o alento, experienciado no inaugural tempo do pós-independência, não terá passado de uma sensação fugaz, um breve lapso entre dois momentos antagónicos. De um lado, a fragilidade da resistência colectiva, que reivindicava o direito a ser dono de si e do próprio chão, do outro, a pujança da contra-revolução, patrocinada por capitais estrangeiros, que tem vindo a adulterar o semblante da nação.

A alteração de nomenclatura do CNA para CNAD, implementada no decurso da Comissão de Serviço que administrou a instituição nos últimos sete anos, assinala indelevelmente essa adulteração. Colocar a Arte e o Design no Centro das dinâmicas culturais da instituição, não terá sido um mero acto de gestão. Muito pelo contrário, essa alteração simboliza um (p)acto político determinante, que tornou oficial o ruinoso processo de mercantilização da cultura cabo-verdiana. 

Ora, efectivamente, os cidadãos mais desavisados poderão considerar exagerada esta última inferência, uma vez que, a rentabilização do potencial económico e social do setor cultural e criativo, aparenta ser uma coisa bastante positiva. No entanto, quem conhece com detalhe os efeitos ruinosos, que resultam da desregulada e impiedosa mercantilização da cultura e do conhecimento, saberá que, infelizmente, não existe qualquer excesso na afirmação. 

Aos tais cidadãos mais desavisados que, eventualmente, queiram entender os meandros dessa problemática,  recomenda-se que caminhem pelos recantos mais inacessíveis das ilhas, procurem pelos artistas, visitem as oficinas dos artesãos, que à margem dos regulamentos e dos cartões de acesso à indústria do marketing criativo, ousam continuar a transformar a vida com as próprias mãos. Caso tenham a boa-fortuna de encontrar uma dessas almas eloquentes, apreciem a sua sabedoria, desfrutem da sua obra e resistência, e escutem as suas opiniões acerca do (im)pacto da mercantilização da cultura e as (des)vantagens das indústrias criativas nas suas práticas diárias. Estou certa de que a grandiloquência dos depoimentos e a crueza das circunstâncias, com que esses artistas se debatem e labutam, serão suficientes para esclarecer o cidadão, evitando que continue a acreditar nas falácias, propaladas, aos gritos, pelos entusiastas gestores das enfadonhas indústrias e economias criativas.

Aos cidadãos, eventualmente mais avisados, cabe o desafio de continuar a refletir e a intervir de forma divergente, evitando integrar o coro de opiniões giratórias, influenciadas pelos poderes que transformaram o CNAD num mero palco de actuação política. 

Para (des)orientar esse caminho reflexivo, que sirva de mote a análise das consequências resultantes do excessivo entusiasmo com as economias criativas e da acrítica subordinação às políticas culturais de índole neoliberal, que terão levado o ex-director do CNAD a implementar uma mudança institucional que, qual ironia do destino, haveria de culminar no seu próprio afastamento do cargo directivo! 

É deveras lamentável que a matriz da Cooperativa  Resistência, tenha dado lugar a um espaço assim – cativo dos enredos das gentes de morada e dos negócios abusivos das indústrias criativas.

A todas as demais almas livres e eloquentes, que continuam a viver e a criar as suas próprias (trans)formações à margem das instituições, resta-vos aguardar que os artistas institucionalizados, ao abrigo das economias criativas, percebam que toda e qualquer ausência de revolução é um (f)acto que enfraquece a cultura cabo-verdiana!

Antónia Marques

ao centro

das ilhas do meio do mundo 

Este artigo foi originalmente publicado no jornal “Santiago Magazine”

https://santiagomagazine.cv/colunista/cnad-po-de-ser-o-epicentro-da-contra-revolucao

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