[ navegar à bolina dos Acordos de Pescas – Parte I ]
Longe vai o tempo, em que a temerária navegação à bolina era a única forma de mitigar o isolamento das ilhas de Cabo Verde. Grandes homens, ao leme de pequenas embarcações, entre façanhas e infortúnios, lançaram ao mar uma frágil e fina rede de ligações marítimas e, assim, encontraram forma de evitar que os ilhéus sucumbissem às agruras, impostas pelas fronteiras do Atlântico.
Porém, lamentavelmente, no tempo que vai hoje, a deslocação entre ilhas permanece enredada numa série de desventuras e peripécias, tantas vezes insuperáveis, que condicionam a vida (e a morte) dos cabo-verdianos. Pois, se no entretanto, as embarcações foram ganhando escala, os homens que tomaram o leme terão perdido caráter e elevação. Soçobram os ilhéus, enredados em promessas vagas, acordos sem fundo e parcerias abusivas.
A insularidade, condição que por si só apresenta uma série de constrangimentos, vê-se fatalmente agravada com a actual debilidade das ligações marítimas. É, no mínimo, confrangedor que um país com 99,3% de território marítimo, explorado por enormes arrastões estrangeiros, continue enclausurado em dez pedaços de chão, que representam apenas 0,7% do seu território!
A frota desajustada, a frequência irregular, o abandono de certas rotas, a displicência de quem governa, a ausência de embarcações para acudir a emergências, entre muitos outros aspectos, têm contribuído para acentuar as vicissitudes, inerentes à condição de ser ilhéu. Infelizmente, não faltam provas, relatos e evidências da angústia que, à vista de todos, flutua no mar. Será este quadro obra de uma qualquer sentença divina? Ou uma previsível desgraça, provocada pela falta de zelo dos governantes da nação?
Se, num passado remoto, a penúria das ligações marítimas traduzia as debilidades económicas e estruturais do país, como se justificará que, hoje, num presente patrocinado pelos acordos de pescas com a União Europeia (UE), a penúria se mantenha?
Estarão os governantes da nação habilitados para negociar tratados de mobilidade com a UE, quando, efectivamente, não conseguem sequer garantir que os seus concidadãos possam navegar entre-ilhas de forma confortável, digna e segura?
Infelizmente, as inúmeras evidências e retóricas discursivas apontam para um rotundo Não!
É um facto incontornável o que têm ganho os armadores da UE, com os famigerados acordos de pesca, no entanto, é muito difícil percepcionar as melhorias efectivas que esta parceria especial terá trazido à vida da generalidade dos cabo-verdianos!
Melhoria da frota pesqueira? Aumento de capacidade de pesca? Melhores condições de armazenagem e tratamento do pescado? Mercados de peixe mais apetrechados? Portos mais seguros? Embarcações de transporte de passageiros mais dignas? Equipamentos de socorro e emergência? Incremento de vigilância e deteção de práticas ilegais e de pesca abusiva? Diminuição da concorrência desleal entre a frota pesqueira estrangeira e a frota nacional? Inspeção e regulação da sobre-exploração praticada pelos atuneiros da UE? Criação de medidas de gestão adequadas à regulação do sector das pescas e salvaguarda dos recursos marinhos?
Lamentavelmente, quem ousa adentrar as ilhas de pé na txon, à margem de mordomias e privilégios, rapidamente se dá conta que as ditas melhorias são mais escassas do que a chuva.
Os portos ao abandono, as embarcações miseráveis e o coração… sempre nas mãos.
O pescador asfixiado com a carestia da vida, mergulha às escuras, para colocar peixe na boca dos miúdos.
A faina desprotegida, continua a ver passar navios para lá das 2 milhas.
O atum que escapa aos arrastões é raro e a indústria de transformação debate-se com a falta de pescado.
A peixeira rabida no mercado, labuta para vender o peixe antes que se derreta o gelo.
De carreta, sob sol incandescente, vende-se o peixe embrulhado em panos da terra.
E, quando o mar está agitado, os botes pikinotes ficam em terra, enquanto os arrastões permanecem ao largo, subtraindo peixe graúdo ao Atlântico!
Infelizmente, só na melodia dos Tubarões é que “tude kriston tude sinbron/ ten diretu na se gota d’águ”.
Longe vai o tempo em que Cabo Verde celebrou com a UE um Acordo de Pescas. Porém, lamentavelmente, no tempo que vai hoje, as vantagens e as medidas compensatórias prometidas, permanecem afastadas da vida da generalidade dos cidadãos cabo-verdianos.
Homens mesquinhos ao leme de enormes arrastões, entre promessas vãs e patranhas azuis, continuam a lançar ao mar impiedosas redes e retóricas discursivas e, assim, vão encontrando forma de capturar (i)legalmente quantidades insustentáveis de pescado.
Três décadas após a celebração do acordo, confirmam-se os piores receios e as mais temidas suspeitas, Cabo Verde sucumbiu à hegemonia da União Europeia. O pequeno país insular, não tem quem o defenda. A elite, que governa a nação, baixou os braços e aprendeu a sussurrar, em língua estrangeira, o preço da independência – 750 mil euros (por ano) e uns trocados pelas toneladas de peixe capturado!
Lamentavelmente, aliviar a “bida mariadu” dos seus concidadãos não tem sido prioridade dessas elites, cujo empenho tem estado, quase exclusivamente, ao serviço da salvaguarda dos interesses das suas congéneres europeias!
Esse infeliz posicionamento, que tanto enfraquece e envergonha a nação cabo-verdiana, tem favorecido a sobranceria da União Europeia. Essa primazia, que transparece em cada palavra proferida pelos representantes e comissários da UE, sediados em Cabo Verde, é insustentável!
É insustentável que os ilhéus continuem a naufragar em narrativas miserabilistas, enquanto o Ministro do Mar navega em águas internacionais, apregoando a sustentabilidade dos Oceanos!
É insustentável que o Acordo de Pescas permaneça como está – uma patranha que faz sucumbir o Mar e a dignidade dos cabo-verdianos!
da Praia
Antónia Marques
24 agosto 2022
Este artigo foi originalmente publicado no jornal “Santiago Magazine”