da eterna mobilidade de um corpo docente
[ julho, 2023 ]
Após 25 anos de serviço docente, em regime disperso, precário, em trânsito, entre o aqui e o acolá, às vezes um mês outras vezes três, eis que num tórrido mês de julho, no meio da planura, com o chão a ferver debaixo dos pés, surge a fortuna de uma nomeação provisória para quadro de uma imensa zona pedagógica! Num ápice, sem aviso prévio, de uma só assentada ficavam para trás os contratos sucessivos, os horários incertos, as substituições sazonais, os projetos pedagógicos amputados e as relações humanas estropiadas.
Porém, segundos depois, um outro ápice, ainda mais inopinado do que o primeiro, impôs-se de forma mais violenta do que o calor que queimava a planta dos pés! A fortuna era afinal um embuste, um vergonhoso simulacro de estabilidade apenso a uma condenação à mobilidade eterna! Sem surpresa, ou direito a brinde, o impacto da fortuna caída do céu aos trambolhões, em plena planura alentejana, traduziu-se tão só numa momentânea agitação de poeira, que a suspensão do tempo que serve de prova haveria de fazer assentar!
[ agosto, 2023 ]
De novo a concurso, rodei a tômbola, lancei os dados sobre a planura, montei a tenda no parque de campismo e aguardei que a estabilidade profissional e os privilégios da carreira docente recém-iniciada se fizessem sentir! Uma vez mais, para além da poeira típica de um solo que já há muito tempo não sente a água da chuva, nada mais me foi dado a observar!
Com as evidências da miséria profissional num saco e os essenciais pertences pessoais noutro, avancei mercado imobiliário adentro! Em plena cidade meca do turismo (como são quase todas deste país alado) bati a portas e janelas, falei com a_gentes, visitei casas, quartos, caves, aproveitamentos de sótãos mas, nada para além dos preços delirantes me ficou na memória! A oferta rara, na plenitude dos meses de estio está reservada a quem visita a Diana, com dinheiro estrangeiro!
De volta à tenda, sem prazo para abalar do campismo, comecei a equacionar uma alternativa à falta de abrigo, compatível com o salário de professora em início de carreira há 25 anos – a aquisição de uma tenda com avançado!
Porém, antes de perder a cabeça no mercado das casas de pano, alarguei o perímetro da pesquisa, apanhei o autocarro da rodoviária da planura e fiz-me à estrada! Do Redondo aos Vales Verdes as casas raras caras estavam igualmente tomadas! Com a tenda avançada na mira e o mapa da rodoviária em perspectiva, arrisquei mais umas quantas viagens exploratórias, acerquei-me das Juntas de Freguesia e das Câmaras Municipais, indaguei presidentes, funcionários e demais a_gentes locais sobre o que havia sido feito em relação aos prometidos alojamentos para acolher profissionais dos serviços públicos, tão essenciais e cada vez mais raros por estas bandas!
Sem resposta pronta mas com reta prontidão, uns e outros lamentaram a má-fortuna da minha nomeação para esta imensa terra, imprópria para habitar. A planura, clamaram, é mero lugar de passagem, do olival intensivo, que há-de abalar daqui a uma vintena de anos, aos estudantes de erasmus, que abalam todos os dias, reza a história que ninguém fica por cá!
De regresso à casa de pano, com uma só proposição de abrigo na algibeira, não havia muito a ponderar, com as aspirações iniciais e o local de trabalho irremediavelmente afastados, restavam a emergência da situação e o orçamento disponível, pelo que o ideal deu lugar à morada possível, para acrescentar às evidências mais 365 dias de árduo labor.
Quarenta quilómetros diários, em linha quase reta, separam a habitação provisória do estabelecimento de ensino temporário! Ah! bendita nomeação provisória para quadro localizado na imensa lusa alma desertificada, sob os teus pérfidos desígnios todas as variáveis se converteram em incógnitas, a precariedade deu lugar à imprevisibilidade e o afastamento virou insana lonjura!
Pela alvorada, com os despojos de outras vidas na bagagem, abalei do parque, percorri a planura, acedi à nova morada. Ao anoitecer, recém-instalada, apreciei o novo acampamento e, por fim, exaurida pelas vicissitudes de uma carreira desprezada, cedi ao sono antes de conseguir preparar o regresso às aulas!
[ setembro, 2023 ]
Com os 9125 dias consagrados à educação enfiados à pressa numa saca de pano cru, encarei as malogradas circunstâncias e ao 9126º dia, conforme as escrituras, caminhei, outra vez, sobre um desconhecido chão de recinto escolar!
[ outubro, 2023 ]
Porém, como o Ministro #DEMISSÃO padece de cegueira administrativa, resolveu agraciar a minha longa pré-carreira com uma nobilíssima (en)comenda! Como sou pessoa de educação, enderecei aos senhores uma missiva manuscrita, agradecendo a distinção:
Exmo. Ministro da Educação
Sr. João Costa
Exmo. Secretário de Estado
Sr. António Leite
Exma. Diretora Geral da Administração Escolar
Sra. Susana Castanheira Lopes
Assunto: (da suspensão) do tempo que serve de prova
Excelentíssimos senhores
Excelentíssima senhora,
Serve a presente comunicação para agradecer a V/ Ex.as o excelso ato de louvor, através do qual reconheceram o mérito e o valor da minha carreira profissional.
No passado dia 18 de outubro de 2022, tomei conhecimento dessa mui nobre distinção, através da leitura da “lista de docentes que realizam o período probatório” (divulgada na página institucional da Direção – Geral da Administração Escolar).
Na página 8, do dito documento, lá encontrei a distinção honorífica, Maria Antónia Marques Pacheco, debutante do grupo 600, QZP, em funções probatórias no Agrupamento de Escolas Manuel Ferreira Patrício – Évora.
O V/ magnânimo gesto é motivo de um imenso regozijo pessoal, por constituir prova cabal da minha total inadequabilidade à cegueira administrativa, que vai ditando o teor e os termos da doutrina contra-revolucionária, que tem vindo a converter as instituições escolares em terreiros baldios, destituídos de sensibilidade humana.
A V/ decisão conferiu à minha carreira profissional o nobilíssimo privilégio da demarcação do Magistério da Burocracia, tutelado por V/ Ex.as de forma exímia. Os meus 25 insubmissos, livres, contagiantes, inspiradores, indisciplinados anos de serviço docente estão, por fim, a salvo de utilizações institucionais abusivas.
Grata por terem produzido prova documental da inadequação do meu perfil e da minha obra pedagógica magistral, ao desempenho profissional exigível por V/ Ex.as. Sempre desconfiei que a riqueza, a sapiência, o rigor científico, a lisura deontológica, a idoneidade moral, a intervenção cidadã, o rigor académico, a inovação pedagógica, a criatividade didática, a diversidade lectiva, o incansável entusiasmo, estariam fora da V/ área de jurisdição, agora tenho a certeza!
Com gosto, dedicação e empenho tratarei de continuar a comprovar a total inadequabilidade da minha ação pedagógica aos pressupostos confrangedores, que V/Ex.as utilizam para decretar quem reúne ou não, condições para ser considerado Professor de Carreira.
Aproveito ainda para informar V/ Ex.as do imenso prazer com que aceito o desafio em que me colocaram!
Estou certa de que, juntos, embora por vias divergentes, teremos a oportunidade de continuar a produzir fundamentais evidências da inadequabilidade às funções para as quais fomos providos! De um lado, V/ Ex.as amarrados à simplória execução do medíocre programa político, que têm em mãos. Do outro, uma humilde e insubmissa debutante, a braços com a celebração da Humanidade em cada nova lição!
Termino desejando que V/ Ex.as. continuem a garantir o sucesso do Magistério da Burocracia, estou certa de que as consequências da V/ tremenda devoção hão-de continuar a reduzir a pó a esperança, que outrora terá sido capaz de fomentar a criação de lugares dedicados a mirar solidária e colaborativamente o mundo.
Saudações académicas,
a debutante, Antónia Marques
as provas ocultas e os rituais exóticos
[ dezembro, 2023 ]
Encarando o desafio proposto pelo Magistério da Burocracia, deitei mãos à legislação e aguardei pela designação da mentoria, que haveria de me orientar na provação dos rituais de passagem!
Malogrado Probatório, não conheço vivalma com memória de o ter cumprido! Enredo neurótico, atirado para cima dos professores com décadas de experiência apenas e só para que permaneçam mais um ano ( se não forem mais ) congelados no 1º escalão, auferindo a parca remuneração do costume!
[ maio, 2023 ]
A ridícula provação, como previra, imitou-se ao exercício de rituais exóticos do domínio das ciências ocultas! Sob a batuta dos agentes da DGAE, a excentricidade das aprendizagens superou todas as expectativas, houve até espaço para aprender a escrever planos de trabalho em modo Going Bacwards! Passo a partilhar o aprendizado:
[ julho 2023 ]
PLANO INDIVIDUAL DE TRABALHO INTRODUÇÃO (fundamentação)
O presente Plano Individual de Trabalho, concebido em modo Going Bacwards, é uma pequena porção de vida, de um Monangambé (contratado) chamado a cumprir tempo de prova, apesar de há 26 anos servir zelosamente o Serviço Público de Educação.
Milhares de horas de trabalho de campo inscritas num vasto currículo, outras tantas voltas ao sol gravadas na pele, jamais serão evidência bastante de coisa alguma, muito menos de adequabilidade ao fragilizado sistema. É assim Portugal, uma belíssima obra inacabada, em permanente Estado de work in progress!
Em linha com uma jurisprudência destituída de cabimento orçamental, segue, sem pressa, o probatório para justificar o contexto gerador de ilusão! Duas páginas sem rosto mais folha e meia de (re)flexão é quanto resta para inscrever o tempo de minguarda.
Confrangedora provação, conjugar no futuro o verbo que narra a Trova do vento que passou. Mas, como há sempre alguém que semeia, resiste e diz não, erguem-se os braços e enfrenta-se, com engenho, a gravidade.
Com a poesia na céu d’bóka e uma vintena de livros na mão, sobra a outra para cumprir a incumbência, que consiste em planear, em (retro)perspectiva, a implementação da educação pela arte, num território inovadoramente prioritário. O plano de ação pedagógica tem coração de argila e sensibilidade de Harmatão, é obra pedagógica magistral, elaborada a várias mãos!
O programa prevê uma didática capaz de colocar em evidência a Humanidade que (ainda) mora aqui (na Escola)! Se tal não for possível, está previsto o Regresso à melodia, como forma de recuperar o Gesto pedagógico!
ORIENTAÇÃO ESTRATÉGICA
A metodologia de ação, designada por programa de intervenção, prevê a organização das práticas pedagógicas em três fases distintas: Motivação, Território e Partilha. Estes momentos são cruciais para se criarem condições de ensino-aprendizagem, colocando as necessidades dos alunos ao centro.
A motivação desperta a curiosidade, o território promove a ação e a partilha proporciona a necessária socialização do conhecimento. O programa de ação, em três atos, cria condições para a criação e exploração plástica, para a apreciação estética e compreensão sensorial, proporciona o desenvolvimento de uma acuidade e perspicácia visual, centrais na compreensão da complexidade iconográfica do mundo em que os discentes estão inseridos.
As atividades de índole exploratória, concebidas para atender às exigências científicas e defender as valências individuais, consubstanciam um processo individual de trabalho relevante, organizado, e criativo. As ações, centradas na experimentação plástica, na compreensão das linguagens que se situam além números e letras, dotará o aluno de ferramentas essenciais para observar e registar as paisagens humanas de que faz parte.
Para caminharmos nesse sentido, para darmos corpo a uma obra de arte / pedagógica coletiva, temos de, como nos diz Paulo Freire, saber partir do nível em que os educandos estão para nos conseguirmos situar cultural, ideológica e politicamente. Perceber a situação específica, em que se encontram os alunos é, de facto, essencial para com eles estabelecer uma relação de empatia que faça florescer o respeito mútuo.
A empatia criará condições para que cada um se faça ouvir e ocupe o seu espaço de intervenção, para que, juntando vozes, possamos produzir conhecimento amplo e transversal, com real significado e potencial transformador. Esta fase crucial, onde o Tempo é consagrado à compreensão e à empatia, é a génese da obra de arte e de vida do Artista-Educador. Na sala de aula, convertida, sempre que necessário em atelier de criação, concretiza-se a fusão, que dá origem à obra colectiva e à oportunidade de transformar a Vida através do conhecimento!
RECURSOS
Os recursos necessários à implementação do programa de ação, são de índole variável, ora as tecnologias, ora os instrumentos tradicionais, todos são peças essenciais para, a tempo e com oportunidade, poderem ser mobilizados em função de um bem-maior. Os livros, o papel, a tela digital, o pano cru são essenciais suportes de criação, a utilizar com pertinência e apurado sentido de ocasião.
PROCESSO DE HETERO E AUTOVALIAÇÃO
O Plano concebido em modo Going Bacwards é fruto de um apurado e constante processo de verificação objetiva. A reflexão diária, que se regista em livros de projeto, colocam em evidência o teor e os termos da autoavaliação. A escuta e a observação são fonte de informação privilegiada, que sustentam a consciência, indicam metas, apontam caminhos e abrem diálogos decisivos. Para as demais verificações são bem-vindos terceiros, envolvidos e parceiros nas jornadas de criação. Importa perseverar, pugnar, no coletivo, pela produção de conhecimento relevante, de forma a evitar que os planos de ação pedagógica sejam apenas um circunstancial Blá, blá, blá.
[ quase agosto, 2023 ]
O corpo (docente) ferve no meio da lusa alma desertificada, a sentença, apensa à nomeação provisória, viu-se agravada e o tempo suspenso! Do chão escolar, recém-calcorreado, só se levanta a poeira e um ou outro gemido! Tudo o resto permanece adiado.
O acampamento que se avizinha será de pano ou de pedra e cal ?
A distância permanecerá insana ? Os amigos a dois passos ou no extremo de uma caminhada impossível? A família comungará do mesmo tecto ou será de novo arrumada num chat virtual?
Estou certa de que estas e tantas outras dúvidas serão amplamente esclarecidas no próximo bate-papo, promovido pela DGAE!
Aguardemos s e r e n a m e n t e pelas pautas definitivas!
(quase) professora, Antónia Marques