Pode o Tempo ter muitas Esquinas mas, por mais obtusos que sejam os ângulos, jamais se poderá adulterar a (geo)grafia do que tem dentro! Esta observação (geo)métrica decorre da necessidade de colocar em perspetiva alguns enredos, a propósito do lançamento de uma polémica obra compósita, da autoria de Manuel Brito-Semedo.
Quis o destino que a apresentação do livro “Cabo Verde – Ilhas Crioulas”, envolvido numa densa trama di terra, fizesse uma viragem à Europa e viesse aportar no Grémio de Lisboa. No coração da metrópole, sob o obscurecido céu de uma noite de inverno, a agremiação literária abriu as portas para acolher a cerimónia. Paramentada de veludos, tapeçarias, berloques e talhas de ouro estilo Império, repleta de cadeiras ocupadas, a sala rendeu aos ilustres oradores as vénias e as etiquetas da praxe.
Entre bustos, mobiliário de século e um púlpito de vidro forjado, foram proferidos os discursos e as apreciações literárias. A polémica compósita, que anima a campanha de promoção do livro, foi suavizada e traduzida para um irrepreensível, porém insosso e negligente, português académico, muito em voga nos mornos eventos elitizados, que sucedem sobre o envelhecido e pretensioso solo desta província europeia!
Lamentavelmente, por razões alheias às emergências que afligem o povo, o idioma da academia não tem fibra nem margem para divergências, pelo que, de fora dos discursos ficou a controvérsia, a tal seiva que escorre da trama di terra de que é feita a promoção do livro!
Todas as revoluções são actos de cultura, clamava Amílcar Cabral mas, para mal dos nossos pecados, nem todos os eventos culturais são necessariamente exercícios de revolução!
Frustando as melhores expectativas, o dito lançamento das ilhas crioulas, foi um mero exercício de subordinação às regras formais instituídas! De facto, a excessiva solenidade do acto, reforçou a urgência de se operarem, quer no universo dos literatos quer na esfera da academia, mudanças profundas, capazes de sublevar os espíritos contra a proliferação das dominâncias abusivas, que cerceiam o pensamento e manipulam a ação!
Lamentavelmente, os combates, as intervenções revolucionárias, os movimentos de resistência, que outrora se travaram em nome da sublevação, libertação e emancipação dos povos, terão sido prematuramente descontinuados. Pelo que, por incúria ou por excessivo culto do ego, as reminiscências e legados, vão-se esboroando em mil e uma fabulações e em delicodoces tratados, repletos de palavras submissas às vozes dos novos donos!
Herança do ancestral tempo revolucionário, a todo e qualquer cidadão é reconhecida a liberdade de expressão. Porém, no atual tempo re-configurado pelos ditames da contrarrevolução, o exercício desse fundamental direito de nada serve se não servir a quem tem o poder de difusão!
Assim, dada a dimensão dos obséquios mediáticos e honrarias editoriais, concedidos ao livro em apreço, recomenda a previdência revolucionária que se indague a inspiração do verbo e a intenção das prosas, com as quais se pretende aligeirar cicatrizes antigas, de forma a esclarecer a que causa serve a difusão da obra, que propõe um olhar novo sobre a identidade cabo-verdiana.
A formalidade solene da casa grande, onde decorreu o cerimonial de apresentação do livro, deu nota das influências desse olhar novo, que terão estado na base dos subsídios aplicados na criação da tal história alternativa, com a qual o autor pretende refutar o destino africano das ilhas crioulas. Efectivamente, pouco ou nada de novo se vislumbrou naquela sala, bem pelo contrário, tudo por ali denunciava uma ancestralidade pesada, conformada e vergada às figuras de estilo e às normas instituídas por uma anciã Carta Régia.
Do outro lado do oceano terá ficado a predisposição para o debate ilustrado e a liberdade de conversar, com garra e afinco, sobre os silêncios que não cabem nas romanescas soirées, destinadas a entreter velhos e renovados aristocratas! De facto, “o passado pode ser uma grande prisão para qualquer cultura, se não for uma referência de construção, mais do que uma construção de referência.” (Mário Lúcio, Manifesto A Crioulização).
Infelizmente, a projeção mediática e os enredos suscitados pelo lançamento do livro Cabo Verde: Ilhas Crioulas – Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade (séc. XV – XIX) na cidade, outrora capital do império, inscrevem-se na esfera dos discursos populistas e falaciosos que, sem pudor, mas com abundantes predicados históricos, vão tomando conta da pública praça portuguesa. A aceitação e o tempo de antena, de que estes fenómenos gozam, não serão certamente obra do acaso! Não, de facto, não haverá qualquer casualidade nesta extrema viragem à direita, pois à medida que cresce o seu poder de sedução, aumenta também a predisposição dos seduzidos para voltarem as costas às tormentas e aos crimes cometidos no recuado tempo colonial.
A rede de influências, urdida sobre secas, fome e muita exploração, não se dissolveu com a independência nem cedeu à revolução! Os homens e mulheres, a quem o regime concedeu regalias e privilégios, hábeis facilitadores de negócios e aventuras ultramarinas, mesmo em dias de intensa bruma, jamais deixaram de navegar à bolina dos ventos mais favoráveis! Instalados nos lugares de poder e decisão, colaboraram com parceiros diversos, imbuídos da missão de voltarem a erguer um império. E, eis que 50 anos volvidos, ressurgem engalanados, ávidos por retomarem a estória, no preciso instante em que eclodiram as revoluções e se concretizaram as independências, alegando que falta relatar com um olhar novo a recuada manhã moderna, que estará na base de um singular mundo novo!
E porque as palavras estão carregadas de conotações e más memórias, esperemos que a opção lexical do autor seja, tão só, uma infeliz coincidência com o passado. Pois, da última vez que Portugal assistiu à proclamação de algo novo, num ápice, ficamos 48 amargos anos mergulhados na mais profunda escuridão, amarrados a uma autocracia liderada por um ditador sanguinário!
A complexidade deste tempo, repleto de esquinas, ângulos obtusos e proposições ambíguas, constitui, de facto, uma interpelação à consciência e à intervenção dos que ousam resistir às dominâncias abusivas! A alienação, disfarçada de douta literacia, em tempos utilizada para oprimir as almas e subordinar os espíritos, está de volta em toda a sua miserável plenitude.
Cumpre a cada ser emancipado, ilustrado pela escola da revolução, confrontar as manobras, os discursos académicos subvencionados, as fabulações literárias, as investigações seletivas, as atividades culturais institucionalizadas e as polémicas alinhadas com a situação, para evitar que se repitam os episódios e as provações titânicas de outrora.
Longe do grémio e a salvo dos vícios do português académico, concluo esta inconformada reflexão, fazendo votos de que as inquietações aventadas venham a revelar-se meras extrapolações! Porém, por coincidência do destino, ou talvez não, a fé depositada nessa aspiração foi de súbito abafada pelo som que me chega, através da RTP África: “Decorre, esta semana, na ilha de São Vicente as negociações para a implementação do novo protocolo no âmbito do Acordo de parceria no domínio das pescas entre a União Europeia e Cabo Verde.” Será este tipo de viragem que subsidia o pensamento e protege as costas, de quem declina o destino africano das ilhas crioulas?
Antónia Marques
( 17 fev 2024, publicado em https://santiagomagazine.cv/ponto-de-vista/polemicas-compositas )