Crioulo, língua (da) mãe do cabo-verdiano

crioulo, a língua (da) mãe do cabo-verdiano

Ser Professora, em diversas sala de aula de Cabo Verde, tem sido um imenso privilégio e fonte inesgotável de conhecimento. A escola, palco social e cultural privilegiado, proporciona uma rápida percepção das circunstâncias em que decorre o quotidiano do cidadão cabo-verdiano, pelo que, não me tem sido difícil percepcionar as intrincadas problemáticas, suscitadas pelo dilema de ter uma língua mãe e uma outra “madrasta”. Assunto que, pela importância de que se reveste, tem motivado a minha reflexão. Encontrei na Lei de Bases do Sistema Educativo de Cabo-Verde, o mote para este primeiro tomo da reflexão em curso.

Lei n° 103/III/90 de 29 de Dezembro
Artigo 9° (Educação e identidade cultural)
1. A educação deve basear-se nos valores, necessidades e aspirações colectivas e individuais e ligar-se à comunidade, associando ao processo educativo os aspectos mais relevantes da vida e da cultura cabo- verdianas.
2. Com o objectivo de reforçar a identidade cultural e de integrar os indivíduos na colectividade em desenvolvimento, o sistema educativo deve valorizar a língua materna, como manifestação privilegiada da cultura.
Artigo 11º (Processo educativo)
1. A escola cabo-verdiana deve ser um centro educativo capaz de proporcionar o desenvolvimento global do educando, em ordem a fazer dele um cidadão apto a intervir criativamente na elevação do nível de vida da sociedade.

Crioulo
língua (da) mãe
do cabo-verdiano,

língua do colo, da reprimenda e do mimo
língua de dizer o que vai dentro
língua de amar
língua de praguejar
língua parceira, companhia constante
língua de levar para todo o lugar!

conversada
apregoada
cantada
aos berros ou em surdina,
é forma de afirmar emoção
é modo de traduzir pensamento.

Crioulo
é mistura de fonemas que cruzaram o mar
para chegar às margens da Praia,
aí se fundiram com as palavras que já habitavam esse lugar!
diversidade, pluralidade, crioulo é obra maior,
materializada por uma quantidade de gente misturada,
a quem roubaram a liberdade
de decidir o rumo a dar à própria vida.
homens e mulheres amarrados a um pesado fardo de trabalho forçado,
arrancados à força a outros lugares,
atrozmente violentados,
talvez tenham encontrado na língua
forma outra de fincar raízes e assim construir um lar!
a liberdade, ainda que amputada, jamais pode ser sumariamente eliminada,
é prova disso o crioulo, língua que fala de autonomia,
centelha de esperança que iluminou dias escuros!

Crioulo
língua materna
língua primeira
é identidade
é clamor de dores passadas
é língua fortificada
é língua entoada contra a corrente
é compilação de vontades, anseios e receios
é geografia, é orografia
é vento, é poeira, é tempestade
é chuva que alimenta a sementeira
é o sonho alcançado!

Crioulo
língua de batalha
arma de guerra
escudo contra tufões e furacões
sua sina – luta permanente!
em conflito entre a fala e a escrita,
mãe ou ama de leite?
é a primeira mas não é a oficial!
é identidade mas não é documento!

Crioulo
língua que se aprende a falar
mas que não se aprende a escrever,
tarda em encontrar forma de fundar raízes
em lugar oficial!
é a língua que cedo se ouve
é a língua que se fala em casa e que se leva à escola
é a língua que explica as letras, as cores e a tabuada
é a língua que traz o mundo
é a língua de emigrar

Crioulo, língua usada para explicar o conhecimento
para falar de história, de geografia, de químicas aplicadas e de geometrias
língua ampla e alargada, é primeira, é materna!
mas não existe em consensual forma grafada!

é a língua de existir
é a língua de sentir
é a língua de pensar
é a língua de sonhar
é língua de falar
mas… não é língua suficiente para oficializar documentos!

na rua, na escola, no mercado, na biblioteca, na praça, no parlamento
o crioulo está em todo o lugar,
é língua da conversa diária
é forma de conversar com toda a gente!
é língua que cada um escreve como sabe ou sente!

Crioulo
língua em que outrora se afirmou
o sonho de libertação,
hoje, poderá estar a soçobrar,
se tempo houve, em que oralidade era suficiente para organizar e deixar fluir o pensamento
o tempo que há hoje implica uma outra formulação,
para evitar que o cidadão cabo-verdiano continue enredado,
numa teia de complexidades linguísticas,
forçado a ver a sua razão diminuída e o seu pensamento condicionado,
inibido de se afirmar através de uma coerente forma escrita!

Crioulo
língua (da) mãe,
a primeira a chegar ao ouvido,
língua de identidade,
língua conciliadora,
articulou existência com sobrevivência,
língua de resiliência,
edificada entre o berço e o cárcere,
foi forçada a incorporar léxico estrangeiro,
mas foi valente e preservou,
os genes do chão africano!

Crioulo
é propriedade intelectual,
é herança, é fortuna,
é forma de ler o mundo
é gesto, é palavra, é som suave e agudo
é corpo, é espírito, está repleta de nuances e feitios!

Crioulo é também infortúnio,
é língua presa a um passado desgraçado,
amarrada pelos papéis de estado ao português,
é língua primeira, refém da segunda,
enredada numa outra forma de colonialismo!

Enredo sórdido, trama complexa,
sob a égide da cooperação abnegada!
decorre discreto, sem inibição ou contraditório,
o plano para evitar que o crioulo
seja língua de afirmação e de autonomia!
Camões e seus discípulos,
carregados de privilégios,
são enviados especiais,
capacetes azuis,
forças de intervenção
defensores aguerridos da purificação da língua,
animados, seguem em missão!

no conforto soalheiro de terraços com vistas de mar,
assentes sob privilegiado chão cabo-verdiano,
propõem-se amparar (bem devagar) a passagem,
prestar apoio técnico,
apoiar a elevação do Crioulo a língua primeira!
gigante contradição!
arrogância desmedida!
pretender guiar o crioulo
através da cartilha de outra língua,
que se vê embrulhada num trágico desacordo ortográfico!

sustentar a consolidação do crioulo,
nunca terá sido real objetivo,
desses abnegados e bronzeados obreiros,
será este apenas mais um episódio, parte de uma bem urdida fabulação
para evitar a queda das frágeis paredes do ex-império?
o português jamais cederia o seu lugar a uma língua nativa!

É uma ilusão, inibidora de ação,
considerar-se que todos os cidadãos cabo-verdianos
são falantes e bons entendedores da língua oficial, a portuguesa!
O estado de negação, aprendido desde cedo, nos bancos da escola,
diminui a auto-estima, rouba a determinação e vontade de afirmação!
Urge resolver o dilema,
a língua, mãe ou madrasta, deve estar ao serviço do pensamento
para que se efective a comunicação,
primeira, segunda, oficial ou simplesmente mãe,
há sempre saída para estes dilemas,
assim haja no presente,
como houve num passado remoto,
coragem para combater a utilização da língua como factor de distinção social,
valentia e determinação para evitar que o cabo-verdiano se sinta estrangeiro no seu próprio lar!

 

Antónia Marques

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