
“Os povos originários ainda estão presentes neste mundo, não porque foram excluídos, mas porque escaparam. É interessante recordar como, em várias regiões do planeta, resistiram com todas as suas forças e coragem para não serem completamente engolidos por este mundo utilitário. (…) Escapar dessa captura e experimentar uma existência que não se rendeu ao sentido utilitário da vida cria um lugar de silêncio interior. Nas regiões que sofreram uma forte interferência utilitária da vida essa experiência de silêncio foi prejudicada.”
Ailton Krenak, A vida Não é útil, ideias para salvar a Humanidade
A luta, pela conquista de poder, tem suscitado contendas grotescas entre espíritos sacros e rendeiros da democracia. Uns e outros, não olham a meios, quando em causa está a usurpação do Tempo, através da imposição do ritmo a que sucede a vida-de-todos-os-dias da Humanidade, que resta.
Rivais de circunstância, arqui-inimigos, figurinhas notáveis, elites emergentes, herdeiros de capitais anónimos, administradores de organizações-sem-outros-fins-que-não-sejam-os-lucrativos, líderes de grémios oportunistas e indivíduos portadores de um sem fim de títulos académicos, juntos ou uns contra outros, ora travam lutas mesquinhas, ora celebram medonhos pactos de agiotagem, com os quais se propõem (continuar a) reduzir à sujeição a natureza humana.
A pegada de destruição, que esta corja deixa por onde passa, tem provocado a ruína da empatia social, o que, lamentavelmente, tem acelerado a degradação das relações humanas.
Contudo, e apesar de ruinosos, os planos de exploração destes Vendilhões do Tempo, contam com farta cooperação e inúmeros aliados, o que tem ampliado consideravelmente o seu potencial destrutivo. Pelo que, não há ramo de atividade que escape às investidas desses parceiros de conveniência, que actuam, deliberadamente, no sentido de corromper, pela cobiça, a dignidade humana. Lamentavelmente, não faltam criaturas desprezíveis, desprovidas de afeição que, a troco de fama e fortuna, se predisponham à indecência e ao trabalho-sujo de cultivar a mediocridade, como forma de tolher o discernimento da humanidade.

Ora, perante este desgraçado quadro de circunstâncias, não será de espantar que a natureza humana se encontre desvalida e, por isso, resignada à (mono)cultura medíocre, que transforma o mundo num pardieiro mal-frequentado!
Neste decadente cenário, desenhado pela ganância e colorido com matizes diversas de soberba, o Tempo vê-se aprisionado e a Vida despojada de emoção, comoção, sensibilidade e memória.
O triunfo desta agiotagem está estabelecido de pedra-e-cal, é imagem de marca de uns quantos bazares de quinquilharias e bugigangas, administrados por expertises na forja de artes e letras e na sua venda a retalho!
Enclausurada, numa invisibilidade forjada a ferro-e-fogo, a natureza humana está incapaz de interpelar a ordem férrea estabelecida, para reclamar o direito a enxergar e ser enxergado de forma digna!
Apesar de parecer impossível escapar a esta vil realidade, há quem tenha essa proeza, dispondo-se à ventura de encontrar no exílio caminho para a autodeterminação. Porém, a evasão não é suave; exige coerência e sensibilidade para distinguir os bons instantes das miseráveis consequências.
Nestes termos, o evasionismo é acto de resistência! Perene, traçado pela convicção de quem procura escapar à vida contrafeita, à agiotagem medíocre e à insularidade social que caracterizam a geo-grafia das sociedades sombrias e embrutecidas pela concorrência entre indivíduos, nas quais não há espaço disponível para albergar uma verdadeira comunidade e um verdadeiro diálogo, que só podem “existir onde cada um pode ter acesso a uma experiência directa dos factos e onde todos dispõem dos meios práticos e intelectuais para decidir sobre a solução dos problemas”. (in, Guy Debord, Anselm Jappe)
O exílio é um caminho longe, de vontade, que sucede entre a fortuna das azáguas e a estiagem prolongada. Não é penitência, nem degredo, é sabura pa kem ki sta bai, tristéza pa kem ki sata fika (tempos aprazíveis para quem parte, tristeza para quem fica).

Porém a prática da evasão exige talento inato, rebeldia e coragem para consagrar a vida à interpelação das circunstâncias. Claro está, que, pelos requisitos exigidos, o exercício deste ofício é raro e, maioria das vezes, considerado inaceitável pelos restantes seres humanos. Por isso, estar em ruptura é a condição natural das almas excêntricas, que ousam caminhar de forma desajustada ao estilo-de-vida-resignada instituído.
Seria fundamental identificar as circunstâncias que desencadeiam o evasionismo, para compreender o teor e os termos da ofensiva que tem subtraído à natureza a sua humanidade. Seria, também, crucial identificar os agentes, que cometem esses ataques abjectos, para expôr o impacto e o alcance das suas miseráveis e mesquinhas ações. No entanto, desgraçadamente, a essencialidade não se sobrepõe à eficácia da (des)ilusão, pelo que, não é de admirar que, num Tempo subordinado à soberba dos Vendilhões, não haja disponibilidade para refletir sobre a realidade!
A manutenção, a ferro-e-fogo, da indisponibilidade para a reflexão, que faz crescer a (des)ilusão, é atividade amplamente disseminada! Agraciada pela academia, submetida ao capital, assegurada pelos movimentos cívicos, comprometidos com as agendas políticas e validada pelos intelectuais e ativistas, subsidiados por capitais antagónicos às causas que dizem defender. Entre as cátedras fúteis de uns e as causas oportunistas de outros se esvai a Humanidade.
O Tempo agrilhoado a uma (des)ilusão que alguém quer eterna, não tem espaço para dissidências, tão pouco para apreciar os seres que vagueiam pela crista da ruptura, ainda que sejam vitais para a preservação da Humanidade, que resta.
Ousar escrever a vida-de-todos-os-dias com uma caligrafia determinada, expressiva, livre de condicionalismos e amarras é fenómeno invulgar e, por isso, sentença de anonimato e invisibilidade no seio da dominante monocultura da mediocridade.
Apesar de condenado e, assim, impossibilitado de se exibir nos bazares de quinquilharias e bugigangas, o exilado não hesita e continua a escrevinhar a sua vida e obra, pois, jamais foi sua pretensão alcançar fama, notoriedade ou fortuna nessa indústria da cultura submissa aos caprichos do Capital!
Antónia Marques
artista dragoeiro
em exílio perene
“…cada ocasião em que o sujeito não modela o seu mundo é considerada uma demissão…”
Anselm Jappe, Guy Debord