
Prova de vida
25 de janeiro de 2016, 10h11
dia seguinte à eleição de Marcelo para Presidente da República
embaixada portuguesa em Cabo Verde,
sala de espera
achada de santo antónio
cidade da Praia
Santiago
De novo na Embaixada, ontem vim cá para votar, hoje venho para certificar papéis e contratos. Encontro uma quantidade considerável de gente. Estranho, não tem sido frequente. Observando os passos, as pessoas e os seus movimentos percebo tratar-se de uma rotina que ainda desconheço!
Aguardo para receber a senha que ditará a hora da minha sorte – 21 foi o número atribuído.
A sala de espera, espaço amplo e arejado, está apinhada, a televisão ligada, a RTP África transmite o noticiário.
Chamam o 96, segue agitado mas solene o atendimento.
Encontro lugar para sentar, arrumo o saco no colo, pego na caneta e no caderno, tento arranjar forma de registar o passar do tempo. Começo a desenhar umas letras, comprometidas apenas com o que observo! Gosto de cuidar da expressão das letras, aprecio a elegância da linha fina, preta e delicada que desfila ligeira e solta no papel. Os exercícios gráficos, que previra longos, de pronto foram bem interrompidos, eis-me novamente surpreendida pela fortuna dos encontros imprevistos.
Aproximou-se devagar um senhor, homem simples, alto, com ar preocupado, abordou-me delicadamente, confessou estar irritado, partilhou comigo o motivo da tormenta que tem perturbado o seu sono. Dormiu mal, disse, dorme sempre mal quando chega o dia de se submeter a esta prova de vida. Desta vez a consumição foi maior, viu-se incrementada, a má sorte veio acompanhada.
Entre um desabafo e um esgar de sono mal dormido, o senhor apresentou-se, chamava-se Lucindo. Desgastado, aborrecido, mortificado pela crueldade resgatada por umas quantas más memórias, encontrava- se ali angustiado, entre o dilema de não ter cartão para saldar a conta da sua prova de vida, e a tristeza de ter de encarar o professor Marcelo como o presidente escolhido.
Estava ali para cumprir a sua pena, para garantir a sobrevivência via-se, ano após ano, forçado a revisitar o passado, a pisar de novo um chão onde sente que não é bem vindo.
Recebeu a informação de que só poderia pagar os custos da operação com cartão bancário, ou comprovativo de operação bancária. Um enorme constrangimento, comentou agastado, pois não tinha cartão, só sabia usar dinheiro! Eu tinha cartão, estava decidido, esse sarilho passou a estar resolvido.
Continuamos a conversar, juntos revisitamos memórias e um sem número de estórias veladas, pedaços de tempo sofrido, eventos de um passado que muitos desejam ver apagado! Não eu, nem tão pouco o Sr. Lucindo.
As suas palavras iluminaram a minha compreensão, ouvi da sua boca o relato que falta, percebi, nas descrições amarguradas que fez de parte da sua existência, a indecência com a qual se construiu Portugal.
Ali estavam todas aquelas pessoas, à espera de vez para prestarem provas de vida! para manterem o direito à herança, reforma paga aos soluços, pela segurança social de Portugal, país onde deixaram suor e dor, têm de vir mostrar sua vida!
O Sr. Lucindo ajudou-me a entender, percorri na sua companhia a história, através dos seus olhos vi Homens e Mulheres com rostos sumidos, cada ruga uma estória, cada artrose um abuso, alguns sós, outros acompanhados, encontravam-se ali, sofriam de novo, sentiam-se outra vez emigrados!
O Sr. Lucindo, esteve em Portugal, trabalhou nas minas durante 15 anos, aí padeceu e foi esquecido. Vida dura, agreste, no escuro, nas entranhas da terra, horas longas sem ver a cor dos dias. Ainda hoje não consegue avaliar onde era mais madrasta a vida, se no escuro da mina, se à superfície, em plena luz do dia.
O Portugal, onde viveu, nunca o acolheu, foi tratado com sobranceria, mal amado, resistiu em silêncio, evitou a custo e com intenso esforço soçobrar.
Ali, no dia da Prova de Vida, de novo num chão padrasto, carregado de pesar e revolta contida, foi forçado a lembrar o terror das madrugadas que antecediam a renovação do “visto”. Não esquece o medo que lhe era provocado pelos cães dos guardas, atiçados propositadamente para o assustar, a ele e a todos os outros que necessitavam de ir àquele lugar. Quão difícil foi esse tempo, tanto orgulho espoliado, tanto sofrimento padecido, o Sr. Lucindo não esquece, como poderia?
Homem sério, honrado, do Fogo, o seu semblante entristecido, denuncia as agruras padecidas às mãos de um povo ignorante, em solo granjeado pela hipocrisia e regado pela falta de humanidade. Sem poder reagir, sofreu insultos e humilhações, foi forçado a entender que afinal o chão que pisava não era de todos!
A conversa fluiu até alcançarmos o seu leito preferido, o colo de sua mãe, mulher simples de enorme e genuína sabedoria, que presença forte, que abnegada existência, cuidou daqueles que amou com extrema lisura, delicadeza e elegância, amparou os filhos no desenho dos seus destinos. Arranjou assim forma de se eternizar, habita discretamente o coração do Sr. Lucindo.
Percorremos palavras repletas de emoções, vielas escuras, frias, apinhadas de gente perdida, demos voltas, subimos escarpas íngremes, de passagem, desfrutamos de veredas, enveredamos por atalhos para alcançarmos mais depressa outros destinos, até que, fatigados, caminhamos mais devagar, eis-nos chegados a uma rua sem sentido – O professor Marcelo havia sido escolhido.
A televisão, continuava a transmitir o noticiário, anunciava sem descrição que Marcelo era o novo Presidente de Portugal.
Inconsoláveis, eu e o Sr. Lucindo, clamamos em uníssono a nossa tristeza, incrédulos vociferamos – o que justificaria a escolha dos portugueses? como era possível terem eleito Marcelo para Presidente?
Agarrei na mão do Sr. Lucindo e partimos, de novo em viagem, levei-o a visitar os domingos à noite, em Portugal. Visitamos o porto de abrigo, o lugar televisivo seguro, onde durante anos a fio o professor Marcelo esteve ancorado, protegido do sol, do vento e do frio, foi Rei, governou sem adversário, ocupou o palco em regime exclusivo.
Achados nesse lugar infame, declamei para o Sr. Lucindo!
ontem os votos de 24% dos eleitores foram, infelizmente, os suficientes para que o professor Marcelo passe a utilizar o título de Presidente.
Paciente e regularmente, domingo após domingo, a convite da TVI, o professor, inebriado pela sua hiperatividade, exibiu sem modéstia a sua sapiência, alucinou e vociferou em direto, profeta do bem, do mal e do mais ou menos, assumiu-se como conselheiro dos destituídos. em horário nobre, sem constrangimentos de tempo, ou qualquer tipo de contraditório, esculpiu meticulosamente a personagem, conseguiu convencer, converteu em ativos eleitores os seus fiéis telespectadores.
aparentando estar orgulhosamente só, trilhou disciplinadamente o caminho! fez-se à estrada, abraçou, beijou, afagou, até à náusea! a sua primeira dama gravou, registou, transmitiu em direto todos os momentos “imprevistos”. e o plano estratégico funcionou! o investimento da TVI deu frutos, a novela seguirá em direto, lá, a partir de São bento!
Marcelo e a TVI mudaram de instalações, sem significativos obstáculos, nem tão, pouco grandes desafios, do ecrã à presidência, o trajeto fez-se fácil e sem alarido!
Esse Marcelo, que viveu entranhado em tristes e cruéis histórias, não sofreu nem foi responsabilizado. soube envergar as máscaras, e esperar pela oportunidade, conseguiu acabou por ser premiado!
O homem honrado do Fogo, emotivamente enfurecido, descreveu com palavras ajuizadas a desonra que o resultado de tal eleição representava. As palavras do Sr. Lucindo expressaram uma lucidez que faz falta! Fariam corar de vergonha qualquer ser de consciência cívica desprovido.
De novo com os pés assentes num pedaço de chão de cabo verde, ocupado pela embaixada portuguesa, olhamos de relance a sala onde se esperava pela chamada, era outra vez hora de prestar prova de sobrevida, de novo hora de mostrar que apesar de terem sofrido ainda permanecem vivos. Continuam a existir, carregados de cicatrizes e tatuagens emotivas, resistiram estoicamente às feridas provocadas pela malvadez de quantidade considerável de colonizadores pervertidos!
Não Sr. Lucindo, infelizmente esse problema está longe de ser resolvido! para esse sarilho não vislumbro solução. Tema tabu, assunto proibido, por desleixo ou simples falta de curiosidade, uma ampla maioria de portugueses prefere ignorar, declinam qualquer responsabilidade, juram que essas máculas não pertencem ao nosso passado!
Esses episódios só mostram o descaso das autoridades, não só portuguesas, como caboverdianas, no tratamento de algumas questões simples que poderiam ser resolvidas, tal aumento isolado do salário de um Ministro, com simples click, literalmente. Ora, possuíndo os dois países base de dados acessíveis a todas as entidades tuteladas pelos Ministérios da Justiça ou Administração Interna, sejam cartórios ou conservatórias centrais, valendo “apenas” verificar se há ou não óbito concernente ao utente em causa! Porque não o fazer “via aplicativo” com reconhecimento facial ou impressão digital, por exemplo?
“Quem quer inventa uma maneira! Quem não quer inventa uma desculpa”.